
Noite Viva no Teatro Aberto0 (0)
28 de Dezembro, 2017
A noite, ou melhor a peça, inicia-se no exterior e chega à sala em formato de cinema, num ecrã. Quando as personagens entram em casa, a casa é no palco, o centro da ação, que volta ao ecrã quando o palco não chega e é necessário sair de novo para a noite da rua.
Então, um pano/ecrã desce na boca de cena e as imagens passam sem sobressalto, sem quebras, do interior no palco para o exterior, onde a história corre a céu aberto, ganha novas personagens e enquadramentos sem dali sair. E volta sempre ao palco. Nesta cumplicidade entre artes, a ação corre como um texto exposto em duas linguagens distintas que aqui se tornam indispensáveis uma à presença da outra, intercalando-se e completando-se numa fluidez e coerência invulgares, a responder a um gosto antigo de João Lourenço pelo cinema, associado à sua necessidade em inovar.
Um homem acorre em socorro de uma mulher que estava a ser vítima de uma agressão e leva-a para sua casa, uma garagem na casa de um tio, que partilha intermitentemente com um amigo.
Acolhe-a, cuida dela e convida-a a ficar. A sua vida, traz às suas vidas sem nada para contar, novos sentidos, traz a noite das ruas e alguma desordem, mas também uma nova luz e novos propósitos. Ele é um bom coração e vive um dia após o outro, de biscates, com que paga o alojamento ao tio; o amigo e hóspede, ajuda-o, e com o que ganha paga-lhe a dormida; ela é jovem e desconfiada e tem na sombra um “namorado” possessivo e violento que a usa e maltrata, mas do qual depende. Ele, o amigo e ela e o tio, são quatro solitários que formam uma pequena e frágil comunidade, com tanto de estranha e de convulsiva, como de um pequeno habitat em equilíbrio, e que acaba por se parecer com uma família, mesmo que algo disfuncional, mas que como família, suporta o caos intrínseco do universo pessoal de cada um.

Rui Mendes, Vítor Norte ©Daniel Viana Martins
Entretanto ele apaixona-se por ela porque no fim, Noite Viva é uma história de amor, mas contá-la implica ir ao fundo e voltar.
Ele é Tomás (Vítor Norte), um homem simples com um coração gigante, uma barba grisalha e cabelo branco dos seus 60 anos, um sonhador benevolente que tem sempre cama e mesa para mais um. Por vezes como um jovem, sonhador e aventureiro, outras como um velho perdido num mundo violento demais para a sua bonomia.
O amigo é Doc, (Filipe Vargas) o deficiente ostracizado, ainda assim bondoso e afável, que se chama Bruno, mas que usa sempre botas Doc Martens. É simplório e emocional, e dorme num divã na garagem do Tomás sempre que o namorado da irmã o escorraça de casa, que é quase sempre.
A mulher é uma jovem, Ana (Anna Eremin), prostituta e consumidora de drogas, frágil e carente, diz que o homem que a agredia, o Carlos, (Bruno Bernardo) era o seu namorado e tinha razões para tal. Carlos, é um homem violento e que aparenta prazer em causar dor e provocar medo.

Bruno Bernardo, Vítor Norte, Anna Eremin ©Daniel Viana Martins
O tio, Maurício, (Rui Mendes) um viúvo reformado e amargo que criou Tomás e a quem critica compulsivamente, imiscuindo-se na sua vida e dando-lhe conselhos avulso, vive só, por cima da garagem e passa o tempo a destilar pena de si próprio
O décor da cena é extremamente cuidado em pormenores e o rigor na construção das personagens aliado a uma dramaturgia old school, sem recurso a vanguardismos e apoiado num texto de elevada literariedade, criam laços com o espectador pela simplicidade narrativa e pela familiaridade emprestada por aquelas mesmas personagens, iguais afinal a tantas outras das nossas cidades.
A ação tem Tomás omnipresente, o barómetro e o fio de prumo da narrativa a oscilar entre as resmunguisses do tio, os problemas de Doc, as atribuladas relações com a filha e com a ex-mulher e agora a dedicação a Ana, que se torna pelos melhores e pelos piores motivos, o centro das atenções.
A Ana quer aquela nova vida, quase familiar, mas sente que não está preparada; Tomás quer Ana e partir para a Finlândia deixando tudo para trás para começar de novo; Doc só quer um sítio para dormir e ganhar o bastante para o pagar e o tio, só quer o que não mais poderá ter, a sua mulher.

Filipe Vargas, Vítor Norte, Anna Eremin ©Daniel Viana Martins
Em alguns momentos, como aquele em que Tomás, Doc e Ana discutem, partilham prendas inusitadas, amargura e solidão travestidas por solidariedade e companheirismo, disfarçam dor e tristeza, abrem o coração e deixam-se ser, ouvem música e dançam, não consegui evitar uma invocação a textos de Bukowski.
Há conversas a rondar o surreal e diálogos a parecerem monólogos, enquanto os momentos em que Ana, sentada num banco de rua é abordada por um cliente, ou Tomás é abandonado na esplanada, são silêncios a que nada falta.
Na cena final o cinema e o teatro sobrepõem-se, imitam-se, copiam-se e selam em beleza estética uma peça que busca o intangível das relações e das palavras, por detrás das palavras de um texto, só aparentemente simples e de relações só aparentemente complexas.
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Encenação João Lourenço
Cenografia António Casimiro e João Lourenço | Figurinos Isabel Finkler | Luz João Lourenço
Com Anna Eremin / Bruno Bernardo / Filipe Vargas / Rui Mendes / Vítor Norte
Um Filme de João Lourenço / Nuno Neves | Argumento João Lourenço / Vera San Payo de Lemos
Com Anna Eremin / Bruno Bernardo / Eurico Lopes / Filipe Vargas / Irene Cruz / Ivo Canelas / João Perry / Patrícia André / Paulo Oom / Sílvia Filipe / Teresa Faria / Tomás Alves / Rita Cabaço / Rui Mendes / Vítor Norte
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Produção Teatro Aberto / Other Features
Noite Viva estreou na Sala Azul do Teatro Aberto a 20 de dezembro.
Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.