Texto escrito por Álvaro Lobato de Faria sobre a obra do grande pintor moçambicano Mestre ROBERTO CHICHORRO, aquando da homenagem ao artista feita pela Sociedade da Lingua Portuguesa em 2011.
… Aqui, tudo se passa à noite. Antes, durante ou depois de uma festa que se arrasta pelas horas, as noites não contemplam períodos de descanso. Aumentam as batidas da música e do coração e nem a visão fica diminuída, iluminados que surgem homens e bichos, numa luxúria cromática de extraordinária força lírica. Luares radiantes, cúmplices e confidentes, que encerram segredos de conquistas e namoros clandestinos, apadrinhados pelo universo ancestral do animismo africano, repleto de criaturas oníricas.
Nestas festas, os sons parecem romper os limites da tela e não existe tristeza. Serestas e serenatas, luzes, cores e perfumes são ingredientes constantes que Roberto Chichorro utiliza como garante de sedução.
E múltiplas são as personagens e os seus mistérios. Inebriantes. Repletas de paixão e erotismo incendiários. Mulatas que sonham, maquilhadas de muciro e pó de arroz, que se aprontam para a festa, que se insinuam ou se ajeitam à janela. E esperam… cativas de amor. Os homens agitam-se, os bichos também. Cabras e gatos e bodes e peixes e burros e cães namoradeiros, e os outros, que não sabemos quem são, mescla de fábulas e recordações. Tocadores de viola, de flauta, de piano. Homens-lua, conquistadores. E os pássaros. Beija-flor ou papagaios de papel. Intermediários entre céu e terra, entre mulheres e homens, polinizadores que segredam recados, com morada voluntária nas muitas gaiolas douradas que pendem do infinito.
Este sentido mágico de permanente comunhão com a natureza decorre de vincados traços da personalidade do pintor, do lado idílico do seu pensamento simbólico, da sua admiração perante a beleza do mundo.
E é relato de espaços, de tempos e de mundos vividos. O presente não é só o agora, é também lembrança do passado. A natureza da obra de Roberto Chichorro é alegórica. Não contempla, por isso, inquietações racionais ou dúvidas lógicas. Exprime a língua das gentes e dos bichos e toda a narrativa convida à demora, tantos são os pormenores e as histórias que irrompem dentro da história.
Rejeitando a verosimilhança naturalista, não privilegia a forma mas a essência, legando ao nosso imaginário um amplo mostruário de celebração da vida, alcançado por meio de filtros de sensibilidade melancólica e delicada, autónomo do real convencionado. Roberto Chichorro pauta-se pelo sentido de unidade, num espírito de síntese que, não sendo economicista, permanece atento ao pormenor.
Renuncia à concordância das cores com os referentes representados e confere-lhes contrastes e harmonias inexistentes na realidade visível. Tecnicamente, esta aplicação cromática, de selecção aparentemente arbitrária uma vez que renuncia a qualquer naturalismo, enfatiza tendências opostas na forma e no conteúdo. Codifica sentidos. A cor não é um simples valor estético.
Chichorro tira partido das misturas ópticas, joga com o brilho e a saturação numa cumplicidade constante entre dominantes e acentuantes, e mantém a nossa atenção focada em todos os pontos da tela.
Grandes manchas de cor chapadas, fechadas por negros contornos e pontilhadas, amiúde, pelo esplendor do ouro, conferem uma expressividade vibrante que explica, decerto, a vitalidade da obra deste grande Mestre.
Chichorro não representa. Cria mundos. Abre-nos frestas de portas. E acorda em nós o desejo de espreitar. Vermos sem sermos vistos. Sermos de novo meninos, em noite escura de insónia ou de bicho papão, à procura de um mundo de luz e cor que não é nosso, para espantar o medo.
O nosso reino de fantasia, denso e subtil, realista e fantástico, onde os homens ensinam os bichos e os bichos aprendem a ser homens, na festa das cores da vida. Aqui tudo se passa à noite. Nunca amanhece. Mas não existe tristeza, só nostalgia…
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Álvaro Lobato de Faria
Diretor do MAC Movimento Arte Contemporânea
Diretor coordenador do Movimento Arte Contemporânea, professor, faço palestras, conferências, curadorias e crítica de arte em Portugal e no estrangeiro com incidência no mundo lusófono.