United States of Love – um filme de Tomasz Wasilewski
Estamos diante de um conjunto de crónicas filmadas a um ritmo propositadamente arrastado, com abundância de planos longos. Numa Polónia do final da década de 80 do século passado, logo após a queda do muro de Berlim, as alusões são aqui constantes ao quotidiano pautado por uma certa ideia de rigor, de gentes aparentemente imperturbáveis, num cenário onde predominam os brancos sujos, os cinzentos e os terrenos pardacentos de terraplanagens; trata-se de uma localidade pequena e fabril onde a comunidade se encontra para as cerimónias religiosas e as vizinhas se cumprimentam por monossílabos e mimetismos desinteressados, mas animados pela coscuvilhice reprimida, que apenas transborda pelo brilho do olhar. Os diálogos são minimais, frios, como se não fosse possível nem preciso dizer mais.
Parece quase um documentário este filme de cores sombrias, de personagens macambúzias, onde sexo é desespero e recurso extremo (não é uma manifestação de intimidade nem de afeto, nem sequer uma afirmação de poder), a dança é mecânica e tecnicista e quase todos parecem carregar um fardo maior do que podem suportar. Aqui a hipótese de ser feliz (mesmo momentaneamente), o sucesso social, mede-se pelas Fantas, pelas jeans ou pelos eletrodomésticos que se conseguem arranjar, tudo mediante os parcos dólares que circulam sub-repticiamente.
Uma vida padronizada, de carências de vária ordem a par de um sistema social onde aparentemente o básico é assegurado de forma tendencialmente universal (nomeadamente, Saúde e Educação). “Consegui arranjar salsichas brancas!”, é a exclamação de uma mulher que recebe convidados, a qual ilustra bem um certo tipo de frustração que consiste em não poder conceder-se uma pequena extravagância inócua, tendo embora a sobrevivência assegurada.
Quem já viveu ou teve alguma experiência num país do Bloco Socialista ou “em vias de desenvolvimento” (condição à qual, afinal, estaremos todos eternamente condenados), sabe que estas fotografias estão mais próximas do documentário ou da crónica jornalística do que da caricatura. [Sem qualquer julgamento de valor, pois a História encarrega-se de limpar a opacidade das lentes sujas que nos tolhem a visão de conjunto; a seu tempo, um tempo por vezes diferente do tempo dos homens e indiferente à passagem das gerações].
Se existe algum protagonista neste filme, ele chama-se sordidez. Uma sordidez cinzenta e bolorenta, uma ausência de brilho vitorianamente austera, vivida como uma depressão partilhada.
Dir-se-ia que algumas vezes essa sordidez incolor se quer libertar dos seus próprios escolhos: quiçá numa aula de aeróbica ministrada pela bela Marzena, ao som do I Wanna Dance With Somebody, ou num momento de maior intimidade entre Ágata e o marido, ou ainda na homilia do jovem sacerdote da terra, o mesmo que vai aspergir a casa dos fiéis e ateia inflamadas paixões carnais. São no entanto vãs tentativas que apenas acentuam o grau de cinzentismo e desespero contido nestas pessoas, que ultrapassam as suas personagens na sua dimensão humana. Que pensar de uma aula de dança onde ninguém esboça o mais leve sorriso, de uma mulher que sente repulsa pelo seu marido, de uma outra que sofre na carne a ausência do companheiro emigrado, sem data para voltar, um homem que resolve mitigar o sofrimento da distância com alguns telefonemas e vídeos afetuosos na intenção mas frágeis e pobres na maneira de dizer. («Não voltes, não sejas estúpido» – diz-lhe um dos convivas do jantar entre pessoas do seu círculo próximo). Distância gera saudade e solidão, saudade semeia dúvida e insegurança, esta dupla pérfida e implacável que acende o rastilho da traição, ainda que apenas como um espetro invisível, mas incessante.
Neste filme, premiado com o Urso de Prata para o Melhor Argumento (Berlim, 2016), existe um elo entre todos: como nos meios pequenos, quem não é família é amigo ou vagamente conhecido, e a condição de vizinho propicia uma proximidade que se confunde com o perigo da intimidade indesejada. Talvez o isolamento acústico dos edifícios seja insuficiente numa sociedade que privilegia a habitação para “todos” em detrimento de alguma sofisticação naquilo que é visto como dispensável, como talvez a própria estética arquitetónica. Até o corrimão metálico das escadas se assemelha às grades de uma prisão e temos a sensação permanente que o drama lateja mesmo ao lado. Nem a beleza das mulheres intensamente loiras confere alguma cor à devastação do cenário. Tudo é escuro, árido, depauperado, de noite como de dia, e não há luz que chegue para tornar visível algum resquício de alegria. Entre as mulheres de maridos afastados, as que sobrevivem em casamentos de fachada, as que escondem paixões “pecaminosas”, não há uma réstia de esperança. Entre Iza, a diretora escolar (Magdalena Cielecka), Marzena, a instrutora de aeróbica (Marta Nieradkiewicz), Agata, a funcionária do clube de vídeo (Julia Kijowska) e Renata, a professora à beira da reforma (Dorota Kolak), paira um ar de tragédia, na época da Solidarność, fundada por Lech Walesa.
A vida corre gélida e lenta entre muitos cigarros, excessos de álcool, solidão, violência de género, cortes programados de fornecimento de água, bichas, subornos sistemáticos e recurso ao compadrio – outra das características de uma certa época acantonada numa geografia socio-política a que já fizemos referência – sexo desapegado e tímidos sonhos. As convenções sociais, políticas e éticas, e o peso esmagador do coletivo levam a melhor neste filme que vale pela visão documental que retrata as prisões dentro de nós.
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Estreia em Portugal a 25 de maio
Escrevo crónicas, contos e poesia. Ensaio palavras entre linhas e opino sobre cinema, preferencialmente africano e lusófono. Semeio letras, coleciono sílabas e rumino ideias.