Contexturas é um livro belo.
Composto por uma seleção de quadros da pintora Armanda Alves, que a escritora Luísa Fresta se propôs ilustrar com histórias, Contexturas resulta numa combinação de artes e de obras de arte, que se transformam de uma forma líquida em uma só obra.

A Armanda pintou, exprimiu da melhor forma sentimentos e emoções impossíveis de transmitir claramente em qualquer outra linguagem, que não as suas tintas e cores. Exprimiu-as na perfeição da plenitude que na arte toca, a sua arte, a explosão do seu íntimo, das suas recordações, das suas perceções, que desta forma, no seu abstracionismo expressionista, devolve ao mundo.
A Luísa não se meteu simplesmente no assunto tentando dizer a mesma coisa, antes, abriu a alma à linguagem universal e íntima da Armanda e deixou-se dominar. Bebeu tudo o que cada quadro lhe dava e transferiu como tão brilhantemente sabe, tudo o que apreendeu para o papel, em linguagem escrita, a linguagem de que é privilegiada emissária, a única linguagem que lhe permite alcançar o intangível.
O resultado é Contexturas, um conto para cada quadro, em que a Luísa nos revela o que dele recebeu. Numa expressividade bela e rica, com amor e humor, são vinte poemas que não falam de arte, são a arte de dizer, de exprimir sentimentos de outra forma, são observação e exposição também.
As duas artistas têm no âmago da sua ligação aquela mais forte da terra, “a” Angola que as une indelevelmente.
Artes & contextos − Como se conheceram?
Luísa Fresta − Nós conhecemo-nos pessoalmente em setembro de 2016, durante a exposição da Armanda intitulada Versatilidades. Mas na verdade já tínhamos tido muitas trocas de experiências, já tínhamos conversado bastante nas semanas anteriores, desde que a Maria do Sameiro[1] nos apresentou, nos pôs em contacto, e me alertou para a originalidade da obra da Armanda. Ainda bem!
A&c − Como nasceu esta obra?
L.F. − Os quadros da Armanda já existiam, são obras que datam de épocas diferentes, e eu comecei a interessar-me por eles desde essa altura (agosto/ setembro de 2016). Olhando para a obra da Armanda, no geral, percebi que a maior parte das telas era de tal modo expressiva e densa que merecia ser “contada”, pelo menos senti a necessidade de transpor para palavras aquilo que via com os olhos, mas também as emoções que geravam em mim. A Armanda aderiu desde o início a esta ideia e encorajou-me a prosseguir com as narrativas dentro desta estrutura.

A&c − Como selecionaram as obras?
L.F. − Fui olhando para as obras à medida que a Armanda as ia tornando públicas e depois algumas delas eram como um rastilho, percebi que havia uma torrente de sensações que se desprendia das cores, das texturas, das formas. Aquilo era uma impressão tão real que nesses casos as histórias já estavam quase prontas, limitei-me a registá-las em palavras e a limar as arestas. (Se esse click não surgia de imediato eu passava à frente, ou seja, nunca forçámos uma narrativa). A Armanda e eu própria descobrimos desde o início desta parceria que seria este o processo, há quadros que por alguma razão nos falam diretamente, nos arrebatam, e outros que, por mais sublimes que sejam, não despertam logo (em mim) essa vontade inapelável de escrever uma história.
A&c − E afinal, o que é este livro?
L.F. − É uma fusão de telas e contos (de texturas e contos, daí o nome), um livro que nasceu de uma vontade de escrever histórias com base numa pequena amostra da vastíssima obra da Armanda.
A&c − É um diálogo entre a pintura e a literatura?
L.F. − Sem dúvida. A pintura dá o mote, o conto responde. Um diálogo sempre aberto e fluido.
A&c − Peço a cada uma de vós que imagine que não se conhecia e ainda assim ambas tiveram a ideia de realizar esta obra.
A&c − Luísa, que pintor ou pintora escolherias para este projeto, se pudesses escolher absolutamente qualquer um?
L.F. − Nunca senti este apelo, pelo menos não nestes moldes. Esta aventura surgiu neste contexto específico, olhando para o trabalho da Armanda; as histórias não existiriam autonomamente, desligadas destas obras em concreto. Já fiz coisas dentro do mesmo espírito, ainda inéditas, em que escrevo poesia para quadros de outra pintora (Ysabelle Roby-Pétrel, artista plástica francesa) e sonetos para as fotos da Sant’ana, cantora e professora de talentos e expressões artísticas várias. Mas em prosa nunca escrevi com este enquadramento. Respondendo concretamente à tua pergunta, escolheria sempre a Armanda Alves.
A&c − Armanda, que escritor/a escolheria, nas mesmas condições, ou seja sem restrições?

Armanda Alves − Realmente nunca tinha pensado nisso, mas esta parceria com a Luísa alertou-me para estas possibilidades….
A&c − Luísa, o que te inspira?
L.F. − Neste livro, o que me inspirou foram os quadros da Armanda, a 70%, pelo menos. Depois disso, claro que as narrativas se servem de milhares de pequenos episódios do dia-a-dia, vividos, ouvidos ou testemunhados. Os pequenos detalhes do quotidiano, a excentricidade das pessoas comuns, as anedotas das nossas rotinas, o absurdo, o previsível, o invisível.
A&c − Escreves em qualquer lugar e em qualquer coisa, como uma esplanada ou num transporte público, ou precisas do teu ambiente?
L.F. − Posso escrever numa esplanada ou num transporte público, ou até numa sala de espera de dentista. Escrevo no telemóvel, num bloquinho minúsculo, num guardanapo de papel, num bilhete de metro. Mas aí normalmente só tomo notas, escrevo tópicos, coisas muito condensadas, abreviadas. Às vezes fotografo coisas escritas nas paredes, nos elevadores, que só por si davam um título fantástico. E um título já é um resumo, não é? Mas para expandir esses apontamentos e compor um texto coerente preciso do meu canto.
A&c − Armanda, inspira-se apenas em frente da tela, ou transporta para o atelier obras já imaginadas numa qualquer situação do dia a dia?
A.A. − Tudo funciona sem cálculos prévios, por vezes quando tenho trabalho para fazer, tipo exposições, entro numa linha à qual eu me colo, com que me encontro em plena harmonia; não há um desenho sequer, tudo vai criando forma, eu vou-me encantando, e consoante o tipo de trabalho, pode demorar muito tempo ou tempo nenhum…
A&c − Nunca escreveste para uma música?
L.F. − Nunca escrevi para uma melodia já feita. Mas já escrevi umas coisitas que poderão um dia ser musicadas. Escritas com essa intenção.
A&c − E outra coisa que não uma canção, mas um conto inspirado nos sentimentos e emoções que uma música tem desperta.
L.F. − Eu já escrevi um pouco nesse sentido, mas não contos. Sobretudo crónicas ou artigos de opinião, sobre um músico ou um CD, uma escrita mais objetiva que envolve um mínimo de pesquisa, embora com algum grau de subjetividade, visto que não sou especialista de música.
A&c − Como lhe chega, ou de onde vem maioritariamente a sua inspiração?
A.A. − Sou uma fazedora de formas. Não me inspiro em nada em particular: há toda uma energia que vai saindo, gosto da cor, das nuances, adoro pintar com os dedos, pinto com qualquer coisa; há uma rebeldia e serenidade em simultâneo quando estou a criar, o que é divino… No fundo a mescla que consigo fazer “brincando” com a cor é um prazer imenso.
A&c − Inspira-se alguma vez noutras obras de outras formas artísticas, como a música ou o teatro,por exemplo?
A.A − Não é ao teatro ou à música que vou buscar inspiração para os meus quadros… Sem querer repetir-me, é realmente algo que nasce espontaneamente…
A&c − Os objetivos foram cumpridos, ou se começassem agora faziam de outra forma?
L.F. − Pelo que me diz respeito confesso que é difícil aferir o grau de cumprimento porque isto não foi planeado como um objeto comercial, com uma finalidade concreta. Foi fluindo, foi acontecendo com muita suavidade e harmonia entre nós as duas e o trabalho que fazemos. Se as pessoas gostarem do livro, esteticamente também, sentimo-nos satisfeitas e recompensadas. Pessoalmente faria tudo da mesma maneira, inclusive a escolha da editora, Livros de Ontem, que nos orientou e apoiou deste o princípio, mostrando-se detalhista e exigente, como tem que ser.
A&c − Contexturas é uma obra terminada ou é um princípio de conversa?
L.F. − Esta obra está terminada. Mas poderá integrar uma conversa mais ampla, um ciclo de conversas que acontecerá a seu tempo, se nos sentirmos impelidas a isso. Essa janela está sempre aberta.
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[1] Maria do Sameiro André, que veio a prefaciar o livro
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Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.