Estamos diante de uma épico romântico intemporal baseado no romance homónimo de Kurban Said (em 1937) e realizado pela mão de Asif Kapadia.
Ali Khan Chirvanchir (Adam Bakri) é um nobre muçulmano xiita que se apaixona pela princesa Nino Kipiani, uma bela georgiana, cristã ortodoxa, interpretada pela atriz espanhola María Valverde. Em vésperas da Primeira Grande Guerra, há um pequeno país do Cáucaso encravado entre a Geórgia, a Rússia, a Arménia, o atual Irão, a Turquia e o Mar Cáspio, que serve de pano de fundo a esta pujante história de amor: o Azerbaijão. Este território, com importantes jazidas de petróleo na zona da sua capital, Baku, é cobiçado pelo Império Russo, que o anexou, e posteriormente pela URSS, da qual chega a fazer parte até 1991, tal como a Geórgia, quando estes dois países ascendem à independência efetiva.
Para além das paisagens deslumbrantes na zona montanhosa do Azerbaijão e da banda sonora de cortar o fôlego, o filme vive da autenticidade e da ternura que os atores principais imprimem às suas personagens, e também de todo o cenário envolvente, onde a opulência e o luxo da época, na vida da aristocracia, são recriados e fotografados com mestria e rigor.
A história de amor é enternecedora e credível: seja entre a aristocracia seja nas classes sociais mais modestas, uma aproximação entre pessoas de origens culturais e religiosas distintas é quase sempre fonte de conflitos, constrangimentos e tensões. Ali e Nino não são exceção, mas conseguem estabelecer uma inabalável união que parece tudo superar, sem abdicar das suas raízes nem da proteção e do respeito devido à família; a distância, a guerra, a desonra, a oposição familiar pontual, a adversidade do clima e as condições precárias de vida quando são coagidos a isolar-se nas montanhas para poderem formar um lar, são afinal apenas os escolhos inevitáveis do caminho árduo que resolveram trilhar juntos.
Ali e Nino enfrentam a traição de quem julgavam amigo e a relação do casal é testada até ao limite pelas mais diversas provas, agravadas pelas circunstâncias da guerra. Em mais do que uma ocasião são forçados a separar-se, ou pela iminência da guerra de 1914-1918, ou pela posterior invasão do Exército Vermelho em busca do famigerado petróleo sem o qual a Revolução Rússia (Liderada por Lenine, em 1917) não sobreviveria, ou por ocorrências do foro pessoal que transformam Ali num ferido em fuga.
Mas o amor parece sempre levar a melhor, mesmo quando Nino é confrontada com o fantasma da poligamia, por exemplo, ao
ser alertada para a eventualidade teórica de Ali poder tomar outras mulheres por esposas, como muçulmano; ou de ela própria ser obrigada a adotar comportamentos que lhe são alheios e que considera uma violência invasiva dos seus costumes: o uso do véu, o fato de não poder sair sem o marido, são uma amostra do que poderia facilmente ser um entrave a um casamento feliz e bem-sucedido, não fora a capacidade de um e outro de se tornarem flexíveis e de negociarem os aspetos menos vinculativos que advêm das imposições ou recomendações das respetivas religiões e culturas.
Para Ali as escolhas tampouco são fáceis; o amor à pátria, o Azerbaijão, a cuja independência aspira e pela qual luta acerrimamente a ponto de aceitar um cargo no governo liderado por Fatali Khan (à época, primeiro-ministro da recém-proclamada República Democrática do Azerbaijão), terá que ser colocado na balança com o amor e o dever de proteção à família que construiu.
Nino é uma esposa solidária e batalhadora, que se mostra capaz de suportar as agruras da pobreza e os desafios da geografia, a responsabilidade e a imprevisibilidade do trabalho indiferenciado num hospital de campanha, quanto os tempos assim o exigem. Ela também faz um esforço notável de adaptação ao seu papel de esposa de um muçulmano, fomentando boas relações sobretudo com o pai deste, um homem de carácter e coração grande, para quem a religião é um código de valores mas que não lhe tolda o discernimento nem lhe condiciona os julgamentos.
Depois de avaliar sumariamente a futura nora como “uma rapariga de ancas estreitas, como todas as georgianas”, Safar Khan (Homayoun Ershadi) é obrigado a reconhecer as qualidades intrínsecas e a maleabilidade da princesa Nino, não obstante ser “uma péssima cozinheira”, conferindo uma nota de humor a este drama, em cujo enquadramento reencontramos e revivemos essa importante época da História Universal, no limite entre mundos: Ocidente e Oriente, Leste Europeu e Sudoeste Asiático.
A separação do marido e a falta de notícias a que tem que fazer face quando se encontra exilada na antiga Pérsia, são porventura os pormenores mais dificilmente suportáveis desta relação, cujo fruto se encontra já dentro de Nino, enquanto o marido tenta sobreviver ao caos dos dias na frente de batalha, junto de amigos próximos: Ilias e Mehmed; com eles partilha a poética euforia de construir uma nação, mas distancia-se da sua postura temerária e das suas motivações mercê de um pragmatismo que lhe é inerente, pois muitos dos rapazes da sua geração são atraídos sobretudo pela adrenalina do combate e pela aventura em si, pela glória e pelo brilho vão e ilusório da guerra. O mesmo exército russo ao lado de quem combateram durante a Primeira Guerra, e que lhes forneceu precioso treino militar, é o exército que agora combatem para defender as suas famílias e o seu país.
Ali e Nino percorrem, connosco, um caminho empolgante e irrepetível, sonhando sempre com Paris e com uma casa grande com jardim, até aos últimos minutos da obra, que bebemos sofregamente do ecrã.
O tema central deste filme retrata, através da sua história de amor, que permanece profundamente atual e atualizável, outras questões profundas e essenciais do ponto de vista das relações humanas e da convivência entre pessoas e entre países, entre culturas e religiões: a aceitação “do outro”, que tanta tinta fará ainda correr, os limites da tolerância, a defesa da pátria no respeito pelas outras nações.
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Ali e Nino – Uma História de Amor, no IMDB
Estreia em Portugal: 13 de abril 2017
Escrevo crónicas, contos e poesia. Ensaio palavras entre linhas e opino sobre cinema, preferencialmente africano e lusófono. Semeio letras, coleciono sílabas e rumino ideias.