O romance de Luiz Ruffato é transposto para o cinema por José Barahona, que intervém aqui como realizador e argumentista, assinando a sua primeira longa-metragem.
“Estive em Lisboa e lembrei de você”, poderia ser o desabafo de Rodolfo, o amigo brasileiro de Serginho, durante a sua trágica passagem por uma Lisboa morna e cinzenta; o primeiro, do Rio de Janeiro, olha atento e cauteloso para as armadilhas da vida, o segundo, protagonista desta história, que conta na primeira pessoa, é um provinciano cândido e presa fácil para as ciladas do amor e da cidade grande. “Mineiro é como alentejano”, afirma um dos personagens: “devagarzinho sempre”.
A narrativa começa precisamente na pequena localidade de Cataguases, onde Sérgio, fumador compulsivo, se vê na necessidade de deixar de fumar. Há nele uma vontade férrea que o impele nesse sentido, mas recorre à ajuda médica uma vez que os diversos estratagemas para deixar o vício se revelam infrutíferos. Trata-se de um grande fumador: Sérgio conta-nos que fuma cerca de dois maços por dia, e vemos nessa compulsão uma propensão premonitória para o apego; há nele uma ingenuidade obsessiva que o conduz à espiral sugadora dos abismos. O rapaz move-se numa rotina previsível dos meios pequenos: os copos com os amigos, o empregozinho “mais ou menos” no escritório de uma fábrica, as partidas de futebol, o flirt quase obrigatório com a moça do café habitual, a mãe amiga e protetora. O seu caminho cruza-se a dada altura com o de Noemi, uma rapariga graciosa com quem vem a casar. Ela é no entanto uma pessoa instável, excêntrica, mas essa originalidade que animava os dias do namoro revela-se pouco depois uma grave patologia mental com alguns comportamentos comuns a depressões pós-parto ou bipolaridade.
A cena da nudez na fonte é auspiciosa: por momentos pensamos em Anita Ekberg, imortalizada na Fontana di Trevi do «La
Dolce Vita» de Fellini. Uma espécie de intertextualidade involuntária que acrescenta dramatismo à cena, pela comparação, e pela interpretação brilhante de Amanda Fontoura. Serginho vê essa mulher escapar-se do seu domínio afetuoso, ela já não pertence a este mundo, pois a sua alma viaja pelos escombros das trevas: não reconhecendo o entorno que a pariu, o seu desligamento é total. O rapaz torna-se, na verdade, “viúvo de mulher viva”, e com um filho de meses nos braços.
A ideia de emigrar vai tomando corpo: o médico, extrovertido e aberto inicia-o nessa viagem através de importantes alertas em que recapitula em breves traços a história contemporânea de Portugal, país de destino, e as perspetivas de emprego, de sucesso profissional. O quadro não é animador, mas também não é desesperante. Um rapaz pobre de província não emigra só para mudar de vida e ajudar os seus: ele fá-lo também para “calar a boca do povo”, para “virar patrão”, para “viver de renda”, para ascender socialmente e interpretar uma espécie de conto de fadas no masculino. Lisboa é vista como um El Dorado: Serginho não tem dúvidas de que em pouco tempo conseguirá regressar em apoteose à sua Cataguases natal.
É estranho para o espectador português, habituado a viver numa crise estrutural prolongada ouvir um brasileiro exaltar as potencialidades do nosso país como um destino de esplêndidas oportunidades, para “quem não escolhe trabalho”. Mas entre as expectativas irrealistas e o dia-a-dia vai a distância insuperável da fantasia. Serginho vai aprendendo a duras penas que Cataguases não é Lisboa. Lá era feliz com muito pouco, pois não tinha alternativas nem alimentava sonhos desmesurados. Lisboa é uma cidade linda onde se fala a mesma língua, mas não com as mesmas intenções. Quando conhece Rodolfo, seu compatriota, na pensão escusa onde se aloja, exclama: “sempre bom encontrar alguém que fala a mesma língua que a gente”. Nesse espaço lexical de afeto e cumplicidade ele pode ser o que verdadeiramente é. Um rapaz puro e desarmado, vítima fácil de esquemas dúbios que
oscilam perigosamente entre prostituição e tráficos vários. Rodolfo tenta alertá-lo, mas uma paixão por uma conterrânea sua e o seu natural pendor obsessivo acabam por fazê-lo tropeçar. Serginho ouve a história clássica da prostituta honesta que passou por muitas agruras e dificuldades até cair nas malhas da máfia. Puro cliché. E o mundo não perdoa aos ingénuos e aos incautos.
O sonho lisboeta desmorona-se: os longos passeios românticos no Parque nas Nações testemunham a boa-fé de um homem que é engolido pela realidade. [Vem-me ao pensamento o tema de Chico Buarque: Construção. E também uma coladeira de Ary Morais, intitulada Sonho cabo-verdiano. Não serão as aspirações dos emigrantes todas assimiláveis? Se o ilhéu se sente encurralado pela dimensão claustrofóbica da ilha, qualquer homem, qualquer mulher, em situação de precariedade económica extrema se sente também preso a uma geografia social, a uma ilha humana de diminutas proporções, que o impede de viver a plenitude das coisas].
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Na sua passagem por Lisboa, Serginho torna-se Sérgio e aprende que nada é o que parece: na pensão onde se aloja, a mulher de um dos hóspedes não se
dedica apenas às limpezas: ela faz o que é preciso para assegurar a sobrevivência da família. A rapariga por quem se apaixona e que está na origem da sua ruína como ser humano não chega a revelar-lhe o seu verdadeiro nome. O que será deste homem docemente febril e obsessivo que acalenta o sonho de “amealhar” e regressar à sua terra?
Ingénuo, coração puro, homem imprudente e insensato, desenraizado, frágil ou otário? O leitor, telespectador ou ouvinte decidirá. Mas as suas palavras contadas de frente para a câmara em estilo documental ficarão por muito tempo gravadas na memória de quem o escutou.
Escrevo crónicas, contos e poesia. Ensaio palavras entre linhas e opino sobre cinema, preferencialmente africano e lusófono. Semeio letras, coleciono sílabas e rumino ideias.
