A Lição
A sala está completamente às escuras e assim se mantém por uns momentos, em silêncio.
Ouve-se bater a uma porta e sem pressa, uma voz feminina responde “já vou”. Repete-se e começa a desenhar-se lentamente no ambiente uma luz muito difusa, que vai aumentando de intensidade, jogando com objetos e obstáculos vários, criando jogos de sombra dispersos por um cenário quase caótico. De uma zona sem luz ao fundo da sala, surge a figura feminina vestida de negro, elegante e austera, dona da voz que se ouve de novo. É Maria, (Elsa Galvão) que se movimenta lentamente, quase displicentemente e em contraste com a urgência das batidas que ressoam de novo. Da porta entra uma jovem, (Sara Barros Leitão) alegre e bonita, saltitante quase festiva, que vem para a lição. A uma chamada de Maria e após um compasso de espera, entra o professor, (Miguel Seabra), um homem vagaroso, curvado, que parece ter sido desenhado para o cenário.
O professor titubeante e frágil, começa a testar os conhecimentos da aluna alegre e motivada, que considera muito avançada porque conhece (quase de cor) as quatro estações do ano e brilhante mesmo porque sabe somar 2 + 1. Enceta-se um diálogo que raia o disparate, em que a aluna responde de imediato a uma multiplicação de números na casa dos biliões graças à memorização dos resultados de todas as multiplicações possíveis, já que apenas consegue calcular somas, e só sabe contar até 16, ou em que conclui que a diferença de três para quatro não é nenhuma porque “não há nada entre três e quatro”. Começa lentamente a inverter-se a ordem de forças.
Com a omnipresença, embora discreta, de Maria, como mais uma sombra, começa a lenta marcha pelos jogos do tal absurdo que Ionesco não subscrevia, (não este termo). Por mais do que um momento, tudo neste cenário e nestes diálogos absurdos estéreis e por vezes surreais me leva a Kafka e aos seus labirintos mentais de manipulação da realidade, argumentação absurda e insana, para realidades incoerentes e paradoxais.
O professor, inicialmente inseguro e balbuciante, vai lentamente crescendo em arrogância e criando um ascendente sobre a aluna, que se vai anulando na medida em que ele cruelmente lhe vai a desmascarando a profunda ignorância. Um poder alicerçado num saber duvidoso assente em fórmulas dúbias e certezas disparatadas. Esta inversão da supremacia atinge a perversão, e algum público percebe finalmente, que esta não é uma peça para rir.
A criada Maria, uma espécie de consciência reprimida, que é por mais que uma vez escorraçada violentamente e mandada para a cozinha, “o seu lugar”, pelo cada vez mais ríspido professor, serve-lhe de amparo e sobe ao poder quando ele se transfigura quase infantilmente no desfecho trágico da peça.
Numa boa encenação de Miguel Seabra, com alguns belos e criativos pormenores, e bem tratada por este, por Elsa Galvão e por Sara Barros Leitão, a peça desenrola-se num espaço cénico muito bem desenhado por Marta Carreiras e em plena concordância com a alma do texto; com um desenho de luz cuidado, a cargo de Nuno Meira, com interessantes jogos entre o quente e o frio e com música e espaço sonoro de Rui Rebelo, à altura.
A Lição é uma peça sobre a relação frágil e perversa entre o saber e o poder, e o poder efémero do saber; sobre o saber supostamente absoluto que sufoca o livre pensar; sobre a educação e o peso do ensino formatado, ou as suas incongruências; sobre as debilidades da comunicação e como um diálogo se pode transformar num conjunto de monólogos.
É uma peça sobre a complexidade das relações humanas, sobre dogmas sociais instalados, sobre as fragilidades íntimas de todos nós, e que nos mostra que o mundo de hoje não está afinal tão distante quanto desejaríamos daquele de 1951 em que foi escrita e apresentada pela primeira vez em Paris.
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Fotos ©João Tuna
Em cena no Teatro Meridional, Lisboa, até 31 de julho
Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.