É do suspiro de Romeu “aqui, sim, aqui mesmo fixar quero meu eterno repouso, e desta carne lassa do mundo sacudir o jugo das estrelas funestas”, no V ato cena III, que sai o nome desta peça.
E assim, Daniel Gorjão toma Romeu e Julieta e veste-a de século XXI.
O jovem encenador aproveita do texto original o “serviço do amor” e deixa de fora tudo o que lhe é alheio, nomeadamente as manobras políticas e as demandas de poder na cidade de Verona, bem como os confrontos diretos entre as famílias rivais, os Capuleto, família de Julieta, e os Montecchio, família de Romeu.
Fá-lo seguindo a rigor o texto original traduzido; fá-lo – nas suas palavras – “não recorrendo tanto ao romantismo do Shakespeare mas usando as palavras dele” e utilizando “apenas as [oito] personagens fundamentais, necessárias para conseguir contar a história”. Enquadra a ação na fórmula clássica de unidade de tempo/unidade de lugar, e de clássico ficamos por aqui.
A peça evolui no amplo salão do Picadeiro do Museu Nacional da História Natural e da Ciência em Lisboa e usa todo o espaço, sem outra estrutura cénica além de dois módulos de andaimes, colocados um em cada extremo da sala. O resto é feito por recurso a multimédia que leva, por exemplo um personagem em cena a dialogar com a projeção de outro, a jogos de luz e sombra ou contraluz, ou arrastando os personagens do epicentro da cena projetando-os até às paredes brancas do salão.
Acreditando que “Romeu e Julieta é a história fundadora do nosso imagético e do nosso ideário de amor romântico”, Daniel traz-nos uma leitura em que sacrifica o romantismo ao amor sensual, e do ritmo frenético a que também o amor se sujeita nas cidades do séc. XXI, ressaltam o erotismo arrastado pelo desejo, mais do que o romantismo de outrora, conduzidos pelo frenesim de uma juventude em ritmo acelerado, em que a morte não faz parte das contas. Muito embora de tragédia amorosa se tratando, retira algum peso ao trágico relevando o amor, o toque, o beijo, o contacto carnal, a sofreguidão e a volatilidade do amor espiritual.
A fineza da linguagem clássica renascentista, em contraste com o despojamento e a liberdade cénicas, bem como com a modernidade do ambiente sonoro nos temas musicais escolhidos acrescentam alguma nostalgia à mensagem, pelo contraste entre as ambiências inerentes.
A cadência enérgica da maior parte da ação, é pautada por momentos de reflexão e de silêncio, em que apenas dialogam os corpos e as luzes, emprestando a estes momentos uma maior intensidade, como o solo introspetivo de Julieta ou o duelo entre Tebaldo e Mercúrio, este em slow motion. O humor e ironia (apesar de tudo) tão caros a Shakespeare sobrevivem nalgumas falas de Mercúrio e da Ama; os atores ligam-se com o público procurando o contacto visual em desafio ou buscando cumplicidade, fazendo do espectador, mais do que observador, testemunha.
O amor sôfrego e louco, a amizade catalizadora de emoções, a relatividade do tempo perante a urgência de viver tudo rapidamente, encaminham a vida dos amantes para o fim trágico previsto e quase plausível e a peça termina com uma bela e muito pessoal visão do encenador numa cena apoteótica, de uma elegância estética assinalável e mais uma vez com uma belíssima escolha musical.
Com boas interpretações a cargo de Ana Sampaio e Maia, André Patrício, Carla Galvão, João Duarte Costa, João Villas-Boas, Miguel da Cunha, Miguel Raposo, Teresa Tavares e Vitor d’Andrade, Desta carne Lassa do Mundo é uma peça conseguida, e com um corpo consistente e uma dramaturgia elegante e límpida.
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Concebida e dirigida por Daniel Gorjão, com assistência de encenação de Maria Jorge.
- Fotografias ©Rui Palma
Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.