
José Medeiros0 (0)
2 de Julho, 2015
“E mesmo que tu fiques indiferente, sempre há-de ficar uma semente”
Olhando a amplitude e diversidade da sua obra, José Medeiros (aka Zeca Medeiros) é sem dúvida um caso único no panorama cultural português, realizador, musico, compositor, ator, escritor, poeta e cantor tem-nos oferecido com a versatilidade que lhe é reconhecida uma obra ímpar, são quase já 40 anos de cinema, de músicas e de teatro de onde sobressaem dois fatores predominantes da sua carreira, a sua capacidade camaleónica e a forma séria, profunda e cheia de emoção que sempre usou para semeá-la.
Foi “músico de cruzeiro”, tocando a bordo do “Funchal” na altura em que o paquete deixou de efectuar as ligações marítimas entre continente e ilhas e entrou na era dos cruzeiros. Foi um homem da televisão pública e teve uma longa passagem pela RTP e RTP Açores, onde viria a realizar trabalhos que ficariam na memória coletiva como referência do cinema realizado para televisão pública portuguesa. Obras como Mau Tempo no Canal, Xailes Negros ou Gente Feliz com Lágrimas são alguns dos exemplos.
Em termos de edição musical José Medeiros estreou-se em 1978 com o single Pedrada no Charco / Dia de Chuva na Cidade editado com a etiqueta Alvorada da empresa portuense Rádio Triunfo e no mesmo ano ainda lançou o single Vida Roseira. Voltou a gravar em 1983 com o grupo “Rosa dos Ventos” o disco Rimando contra a Maré com produção de Eduardo Paes Mamede. Dividiu o processo criativo musical com João Miguel e Eduardo Paes Mamede e os textos com Luísa Mareante, João Manuel, João Miguel e Fernando Reis Júnior. Neste disco toca piano, guitarra, adufes e batuques.
Mas é quando participa no disco Danças e Folias da Brigada Vitor Jara cantando o tema A Fofa que sente em si próprio e no público em geral que aquela era a “sua voz”, a sua assinatura pessoal. Como cantor e compositor afirma o seu nome e a sua voz como marca registada e inconfundível e nos anos que se seguem, os três discos Feiticeiro do Vento, Cinefilias e Outras Incertezas e Torna-Viagem são nomeados para o “Prémio José Afonso”, Torna-Viagem acaba vencedor em 2005. Em 2007, na cidade de Ponta Delgada, no Coliseu Micaelense, na edição dos Prémios Açores Música 2006, onde vários artistas açorianos foram galardoados em várias categorias, José Medeiros recebeu o “Prémio Carreira – Prestígio”. Em 2010 lançou o disco duplo Fados, Fantasmas e Folias que para além dos seus companheiros habituais conta com a participação de Uxia, as Moçoilas e Rui Veloso e inclui alguns temas extraídos da banda sonora da peça de teatro Sorriso da Lua nas Criptomérias. No início de 2015 lançou O Aprendiz de Feiticeiro que não é um feitiço qualquer e apesar do ruido intenso e apatia cultural que grassa na sociedade em geral nos tempos que correm não se lhe diminui o encanto, pelo contrário, vivemos uma altura em que é urgente convocar as emoções terrenas, o sonho, a utopia e promover a interculturalidade e tolerância através da música.
[bg_collapse view=”button-blue” color=”#ffffff” icon=”arrow” expand_text=”Continuar a ler” collapse_text=”Recolher” ]
A bênção dos filhos, a quem Aprendiz de Feiticeiro é dedicado, começa de forma inesperada com a declamação do texto Ulisses na mentira dos espelhos, e é pela voz calma e profunda de José Medeiros que vem Ulisses empurrado por flautas de vento em pleno espírito de Odisseia. Começa assim, talvez para desenganar quem vem na procura do lado mais fácil da música, ou então para dispor o “bichinho do ouvido”, de forma a entender a cumplicidade emocional entre as palavras e os arranjos musicais, ou para sentir o espaço de uma “sétima aumentada”, onde se ouve o respirar dos cantadores. Os violinos, flautas e clarinetes formam uma paleta de cores suaves que vão colorindo o piano que aqui tem o papel de tela em branco, o acordeão, guitarras e cordas tradicionais prendem as melodias à terra e evitam que levitem mais do que o necessário. Os arranjos vão dando o ambiente necessário ao que se diz, sempre de forma subtil e adequada, sempre ao serviço da comoção. Neste disco o setup normal de bateria não é praticamente usado, e podemos mesmo dizer que algumas das canções vão a toque de caixa como nos cavalinhos (chama-se “cavalinho” ao grupo de músicos que acompanham as marchas populares), outras vão embaladas em percussões tradicionais. De tudo sobressai, na cor mais forte o que se diz e da forma como se diz. José Medeiros para o fazer conta com a colaboração preciosa de outros cantadores como, Marta Rocha Pereira, Pilar Silvestre, Williams “Maninho”, Sara Vidal e Filipa Pais. São muitos os músicos amigos que participam no disco e de José Medeiros sabemos que a música nunca poderia estar apartada da cumplicidade existente entre os músicos e que são esses, de que ele próprio não abdica, amigos que sejam músicos cúmplices. Manuel Rocha (uma parte do disco foi gravada em Coimbra de modo ao Manuel gravar as suas partes), Gil Alves, Rogério Cardoso Pires, Carlos Guerreiro e Jorge A. Silva com quem José Medeiros dividiu a direcção musical do disco com a colaboração aberta de todos os outros músicos, são alguns desses muitos amigos.

É um disco para se ouvir sossegadamente, pois há momentos de sussurro e pormenores de expressividade vocal que merecem uma escuta atenta, depois há o argumento em que se enquadram as personagens (cantadores) e os cenários (músicos). Eis algumas das personagens e alguns dos cenários que podemos encontrar neste disco: por exemplo no Fado da Brasileira surge-nos uma conversa de um só sentido entre José Medeiros e a estátua de Fernando Pessoa, que entre copos e uma guitarra portuguesa vão desfilando lugares comuns entre os dois. No fim pois claro, são em flagrante “delitro” apanhados.
Em Balada do varandim uma guitarra portuguesa apaixonada e um homem que de forma original e emotiva pede à sua amada, “Deixa-te ficar ao pé de mim…”, com um arranjo de violinos divinal e um clarinete de arrepiar, a sua amada por certo ficou bem juntinho a ele… no varandim. Em Partilha sente-se o espirito das ilhas açorianas, das suas festas do divino espirito santo, e sobre o som de órgão de tubos, baila combalido um violino, o sagrado e o profano:
“Partilhar o vinho e o pão
Que este Império é do povo
Bailar no caramanchão
Saudar o mordomo novo”
A viola da terra marca o compasso no refrão:
“Celebrar a sementeira no cântico dos carros de bois
No latejar das veias da terra
Na toada da rabeca e do tambor”
“Celebrar a ilha inteira no cântico dos carros de bois
No latejar das veias da terra
Madrugada do menino imperador”
O circo, o cabaret e o teatro ouvem-se no tema que dá nome ao disco, são invocados pelo arranjo filarmónico e pelo universo da letra, a tuba e a caixa marcam o compasso em tom de procissão, os metais dão a intensidade, José Medeiros declara-se Aprendiz de Feiticeiro, o resto já se sabe, trata-se de um ofício muito enganador:
“Nariz postiço, lágrima pintada, teatrice, mascarada, hei-de ser teu cantador
Teu sátiro, teu cómico, teu clown, vou dançar no chinatown meu fandango bailador”
A precisar de muita afinação o tema A fanfarra dissonante, onde com o mesmo espirito filarmónico vamos todos penteando macacos e lambendo sabão na massacrante lista de espera em que nos colocaram, jogamos na roleta russa, enquanto a crise e a bancarrota vão dançando um “pas-de-deux”. O cinema sobe à ribalta com a canção O outro lado do espelho, e então desfilam enredos e personagens num texto feito à medida e em volta dos clássicos da sétima arte. Há lugar para um Comboio Fantasma que vai empurrado de ilha em ilha apenas pela voz humana:
“pouca terra, pouca terra, tanto mar”
Há também perfume brasileiro quando são invocados os grandes feiticeiros do nosso país irmão em Lua D’Agosto no Rio de Janeiro e no caso de Chorinho pinguço contamos com a participação generosa do brasileiro Williams “Maninho” que adotou os Açores como sua terra. Em Adeus meu velho amigo, há uma homenagem ao fotógrafo açoriano Max Elisabeth, um dos fundadores do Festival Maré de Agosto o mais antigo nos Açores. Em O Casamento das Feiticeiras encontramos o universo folk celtibérico com a voz da feiticeira Filipa Pais em destaque. No tema A suave inquietação das traineiras, está a orquestração mais complexa deste trabalho, a inclusão etérea de uma flauta plangente dá lugar a uma introdução de violinos ao ritmo das congas. Cantam depois José Medeiros e Sara Vidal, que também toca harpa celta na 1ª canção do disco O tear de Penélope.
“De marés se fez esta seara
na noite de breu, na manhã clara
Ondeando danças “viajeiras”
na suave inquietação das traineiras”
“São vitrais de luz rasgando cores
é a voz do mar com seus rumores
as suas canções serão fagueiras
na suave inquietação das traineiras”
A canção termina de forma surpreendente com um coral de sopranos, contraltos e tenores.
O CD vem acompanhado de um DVD com variadas passagens sobre a sua obra cinematográfica, em jeito biográfico, e com algumas canções interpretadas ao vivo, ao todo sete canções: Isaltina, Cantiga da Terra, Camarim (A canção da timidez), Maria Maresia, O Cantador e Gosto tanto de ti que até me prejudico.
Ajuda-nos a manter viva e disponível a todos esta biblioteca.

José Medeiros tem também um novo filme “O Livreiro de Santiago” trata-se de uma narrativa ficcional baseada na vida e na obra do editor corvino Carlos George Nascimento que por graça do distino quis que fosse o 1º editor do poeta chileno Pablo Neruda. O próprio José Medeiros interpreta a personagem do livreiro e o seu filho, David Medeiros, veste a pele do livreiro enquanto jovem. A atriz Maria do Céu Guerra e os músicos Filipa Pais, Carlos Guerreiro e Jorge Palma também integram o elenco do filme. Os próximos concertos de José Medeiros são no próximo fim-de-semana dia 4 de Julho no Festival “Salva a Terra” e no dia 5 de Julho no Festival Silêncio respectivamente em Salva Terra do Extremo e Lisboa, uma boa oportunidade para ver o “Aprendiz que é Feiticeiro” de perto.
[/bg_collapse]
Musico, entusiasta de cordofones que gosta de falar de música, da sua alquimia e do seu indelével sentido cultural.