“O palco não é lugar para pontos de vista”
No século XVII a ida ao Teatro era um acontecimento social, como o foi até uma altura difícil de determinar em finais do século XX. Quem ia ao teatro reunia-se por vezes algumas horas antes no local da representação e até faziam lá as refeições levadas de casa. Era um ponto de encontro onde se discutiam as novidades e se mostravam as modas. As normas sociais e de comportamento não eram tão sólidas como nos dias de hoje e o barulho estava longe de ser um problema. As pessoas falavam alto, e circulavam pela plateia como pela rua. Quando as representações eram em palácios ou em casas nobres não havia palco, ou seja todo o espaço era partilhado. Para anunciar o início da peça e o necessário silêncio da sala, era preciso fazer mais barulho do que aquele que estava presente. Gil Vicente usava um trambolho em madeira, suspenso de uma corda e que era largado para o chão, produzindo um grande estrondo. Este apetrecho ficou conhecido como “diabo vicentino”, como uma das suas personagens.
Mais tarde Molière fazia soar três fortes pancadas (embora haja várias versões em relação ao número destas) que se tornaram quase a norma e ficaram conhecidas como “as pancadas de Molière”. Tratando-se de uma mínima parte da herança que nos deixou, este sinal trouxe até nós (embora com o aparecimento da eletricidade tenha sido substituído por uma campainha ou pelo reduzir da iluminação da sala) e até para aqueles mais arredados da arte teatral, o seu nome.
A relativamente pouca notoriedade de que goza fora do mundo do teatro e académico (para além das já referidas “pancadas”) deve-se em parte ao facto de alguns longos períodos e até pormenores da sua vida particular serem desconhecidos. O filme com o seu nome realizado e apresentado em 2007 por Laurent Tirard contribuiu ainda assim para alguma aproximação ao público em geral.
As biografias de Molière, nome artístico de Jean-Baptiste Poquelin, estão cheias de “pensa-se que…, consta…, há quem julgue que…, diz-se…”, e uma boa parte das hipóteses contrariam-se entre si. Há trabalhos publicados sobre a sua vida, mas algumas de fontes são pouco credíveis e igualmente contrariados e esta aqui lavrada, fruto de recolha nas mais variadas fontes tidas como credíveis, na sua maioria académicas, não pretende ainda assim gozar da plena clarividência. (Não consegui confirmar nada junto do próprio).
É certo que nasceu em Paris a 15 de janeiro de 1622 e que aí morreu a 17 de fevereiro de 1673. No caso da sua formação sabe-se ter sido no prestigiado Collège de Clermont – jesuíta e hoje Lycée Louis-le-Grand, – onde estudou por exemplo, Voltaire. Cursou de seguida direito na Universidade d’Orléans, mas os relatos quanto à conclusão ou não do curso são díspares. O pai ensinou-lhe o ofício de Tapissier du Roi (Estofador do rei), cargo associado ao de Valet de Chambre (criado de quarto), que ele próprio desempenhava para o Rei e herdara também de seu pai. Esperava então que o jovem Poquelin lhe seguisse os passos, mas isso não aconteceu, embora o tivesse chegado a fazer durante algum tempo o que lhe permitiu uma aproximação pessoal ao rei. Esta aproximação viria ao longo da vida e por diversas vezes a revelar-se de grande utilidade.
A loja do pai ficava próxima da Pont Neuf onde comediantes e farsantes realizavam espetáculos espontâneos e improvisados, e do Hotel Bourgogne onde se representavam tragédias românticas tradicionais a que ele assistia com o avô. Tanto o teatro de rua que o fazia rir, como o teatro convencional a que assistia no hotel, aliado ao facto de o teatro estar na moda em França de Luís XIII, sobretudo após o rei ter criado um código de moralidade para o ofício de comediante, tiveram provavelmente impacto nas opções do jovem. Isto já que em 1643, com 21 anos, juntamente com os irmãos Béjart: Joseph, Geneviève e Madelaine (com que viria a casar) e mais uns amigos no total de 10 elementos, e renunciando a tudo o resto, formou uma trupe de comediantes a que chamaram o Illustre Théâtre. Fizeram algumas representações na província, e em diversos teatros de Paris, mas que, sobretudo estas, redundaram em fracassos. Apenas dois anos mais tarde a companhia faliu, deixando-lhe algumas dívidas, o que lhe valeu, já que tinha assumido a sua direção, algumas semanas na cadeia.
Sobre o seu nome artístico ele próprio nunca explicou a sua origem. Especula-se que terá mudado de nome para não envergonhar o pai, tal era o que representava ter um ator na família e também que escolheu este por influência do escritor libertino François de Molière (1599–1624) ou por moda na época em usar nomes referentes a locais campestres imaginários dos quais Molière seria um.
De qualquer modo, desapontado, mas sem desistir, em 1645 deixou Paris com os sete elementos “resistentes” da companhia, e durante 13 anos vagueou pelo sul de França, como comediante, tendo atuado com a companhia de Charles Dufresne.
É indesmentível que esses anos tenham sido fundamentais na sua aprendizagem e aperfeiçoamento. Neste período voltou a formar a sua própria companhia, o que lhe permitiu aperfeiçoar as suas capacidades de dramaturgo, de gestão e direção, as relações com os atores, com o público e mesmo com as autoridades locais. Nesta empresa contou com o patrocínio do Príncipe de Conti, governador do Languedoc, apoio que durou até 1657, altura em que as representações de Molière se começavam a fazer notar por uma crítica social de um realismo “excessivo” para as sensibilidades dos afetados. Foi então que surgiu em Paris um movimento auto denominado “Parti des Dévots” (Partido dos Devotos) que se manifestava de forma contundente contra a “impiedade” do autor. Além de elementos da sociedade francesa e de alguns autores tradicionais, também o próprio Príncipe de Conti acabou por aderir ao movimento, cortando as relações que tinha com o autor.
A dramaturgia francesa, até então fortemente ligada à mitologia clássica, sofreu com Molière uma grande volta. Para diversos estudiosos, Molière foi o autor que elevou a comédia a um nível respeitável e chega mesmo a ser considerado o fundador da Comédie-Française.
Ele não é visto como um auteur, no sentido literário do termo, apesar da importância da sua obra, (tem alguns poemas, uma tradução incompleta de Lucrécio) e de ser de facto um grande escritor, mas essa (a marca literária) não era a sua preocupação. Molière escrevia para o palco, as comédias eram feitas para serem representadas e não lidas e chega a dizer em alguns prefácios que escreve para que as peças não lhe sejam roubadas. Não se dedicava à escrita como lazer, em vez disso escrevia como se corresse contra o tempo. Estava permanentemente em luta com os concorrentes. De acordo com um inventário legal de 1708, tinha na sua biblioteca autores como Montaigne, Plutarco, Júlio César, e Séneca, mas nem isso pode levar a concluir que tenha nas suas obras influência destes autores.
A maior influência que lhe é reconhecida é da commedia dell’arte italiana e pensa-se que, pese embora a falta de documentação daquela época, tenha convivido com trupes deste género nas suas deambulações pelo interior. Esta influência foi apurada mais tarde, quando já em Paris partilhou o Théâtre du Petit-Bourbon com companhias italianas. Nesta altura muitas das suas farsas eram compostas por um só ato e apresentadas de forma parcialmente improvisada a partir de uma delineação geral da peça, precisamente à imagem da commedia dell’arte.
Molière vivia do palco, e não sem ironia, tombou a representar um homem doente, O Doente Imaginário. Diz-se que fora do palco não era alegre nem particularmente conversador, contrastando com a energia animal que deixava em cena. Os seus papéis próprios atingiam uma intensidade dramática e um talento mimético que a comparação com Charles Chaplin se tornou repetitiva. Tinha um apurado sentido crítico e de justiça, que o levavam a aproveitar qualquer incidente da vida e da sociedade para caricaturar. Elevava a caricatura ao absurdo com personagens a atingir a incoerência e sacrificando a ordem em favor da animação, com uma escrita disposta a desafiar todas as regras. Improvisava, introduzia cenas em que levava os atores a interagir com a plateia e permitia o uso de linguagem popular. Fez uma peça a partir dos seus próprios ensaios, incluía nas peças os seus detratores que ridicularizava também. Emprestou a um personagem a sua verdadeira tosse e os atores criticavam-se e zombavam entre si em cena. No entanto, é reconhecido o seu rigor e minúcia enquanto encenador.
Colocou mulheres e cena, uma novidade absoluta.
Apesar do crítico quase impulsivo que havia em si, ironizava sobre a aristocracia e os seus maneirismos, sobre a sociedade em geral e as diferenças entre classes, sobre a igreja e o ateísmo, sobre o casamento, sobre as profissões, sobre a hipocrisia e sobre o inferno, há uma convicção generalizada de que ele não expressava nas suas peças as suas opiniões nem as suas ideias. As peças são feitas para agradar ao público e não para expressar doutrinas, – “eu pergunto-me se a regra de ouro não é dar prazer e se uma peça de sucesso não está então no caminho certo” – dizia, “o palco não é lugar para pontos de vista”.
Na primavera de 1658, Molière decidiu terminar o périplo pela província e regressar a Paris. Em outubro desse ano, representou pela primeira vez perante o Rei na Casa da Guarda, um espaço no Palácio do Louvre, a tragédia Nicomède, de Corneille. Conta-se que em face de um desapontamento geral relativamente a esta representação, Molière dirigiu-se ao Rei e pediu-lhe uma oportunidade para representar uma peça sua, o que lhe foi conceido. Representou então a sua pequena farsa Le docteur Amoureux (O Médico Apaixonado), e esta sim foi muito apreciada, a ponto de ter chamado a atenção do irmão do Rei, Philippe, duque d’Orléans, conhecido como Monsieur, que garantiu a partir de então o patrocínio da troupe, que passou a chamar-se Troupe de Monsieur. Quando se soube que o irmão do rei se interessou por uma companhia de teatro a ponto de a apoiar e de esta assumir o seu nome, o seu prestígio cresceu de repente e passaram a receber convites para grandes salas da corte e finalmente foi-lhe concedido o direito a utilizar o teatro do Hotel Petit Bourbon, ao lado do Louvre. Em novembro de 1960 representou ali uma das suas obras-primas, Les Précieuses ridicules que viria a ser a sua primeira incursão à crítica social. Nesta peça Molière “ridiculariza” a futilidade das senhoras da sociedade e das suas visões distorcidas do mundo, preocupadas com o aparente e apenas com os bens materiais, arredadas da cultura, e desprovidas de qualquer bom senso. Caricaturava em particular Madame de Rambouillet, um membro da corte que se considerava juiz do gosto e que apesar de a peça ter agradado bastante ao rei, conseguiu em conjunto com outros membros da corte que aquela fosse proibida. A proibição foi levantada ao fim de 14 dias, mas entretanto tinha conseguido levar ao encerramento definitivo do Petit Bourbon. Isto levou o rei a conceder a Molière o uso do Théâtre du Palais Royal, construído por Richelieu, onde iria manter-se desde 1661 até ao fim da sua vida.
Mas, Molière tinha feito diversos inimigos e esta história estava apenas a começar.
Entre os seus sucessos imediatos contam-se peças como as duas de 1661, L’École des maris e de Les Fâcheux ; de 1664 as peças musicadas por Jean Baptiste Lully, Le Mariage force, e La Princesse d’Élide, com o subtítulo Comédie galante mêlée de musique et d’entrées de ballet; Le Médecin malgré lui; Le Sicilien ou L’Amour peintre de 1667 e Amphitryon, de 1668 inspirada na peça homónima de Plauto; o a também inspirada em Plauto, desta vez em Aulularia, L’Avare; em 1670 Le Bourgeois Gentilhomme, de que alguns autores adiantam a possibilidade de ter sido inspirada na obra de D. Francisco Manuel de Melo (que viveu em Paris em 1663), O Fidalgo Aprendiz; em 1672 novamente musicada por Lully, a obra-prima Les Femmes savantes e finalmente em 1673, a sua última obra e uma das mais conhecidas, Le Malade Imaginaire, uma peça brilhante musicada por Marc-Antoine Charpentier, em que o protagonista ao fingir de morto fica a saber o que sente a seu respeito quem o rodeia.
Le Misanthrope de 1666, (que hoje se considera uma das melhores e a que Donneau de Vasé um dos instigadores das Guerra Cómica se rendeu), Dom Garcie de Navarre, ou Le Prince Jaloux, Mélicerte e Pastorale Comique, são apenas alguns exemplos de peças que não despertaram grande interesse.
A irreverência e o humor corrosivo de Molière dirigidos aos tiques e arrogância da sociedade parisiense eram por vezes tão descarados que os visados se tornavam facilmente reconhecidos. Teve alguns problemas não só com a sociedade, mas também com a igreja e até com os concorrentes que lhe invejavam o sucesso e a proteção do Rei.
La Guerre Comique (A Guerra Cómica) começou em 1662, quando o dramaturgo levou ao palco L’École des femmes, que é ao mesmo tempo uma das suas maiores obras, e uma das que mais polémica causou.
(A que ficou conhecida como Guerra Cómica deu-se pela “troca de mimos” entre Molière e Donneau de Visé, dramaturgo, que visou também Corneille, Racine e Boileau e que a propósito de L’École des Femmes escreveu Zélinde, ou la Véritable Critique de l’École des Femmes, e a que Molière respondeu com a peça La Critique de “l’École des Femmes” ; Edme Boursault, dramaturgo que também atacou Boileau e escreveu Le Portrait du peintre ou la contre-critique de l’École des Femmes, à qual teve como resposta a peça L’Impromptu de Versailles e ainda Jacob Montfleury, igualmente ator e dramaturgo).
Mas a sua peça mais polémica e que mais escândalo levantou ainda não tinha visto o palco. Foi Le Tartuffe, encenado em Versalhes no final de 1664. Nela Molière atacava a hipocrisia das classes dominantes, desta vez com particular incidência sobre o clero e foi imediatamente considerada ofensiva. Por influência da rainha-mãe e do Partido dos Devotos, – o arcebispo ameaçou excomungá-lo – e através do chefe da polícia o rei deu ordem para suspender a peça, que não teve uma segunda exibição e que assim ficou por 5 anos. Ainda em 1665, e para tentar substituir Le Tartuffe, escreveu e encenou Dom Juan ou Le Festin de Pierre, inspirada numa peça de Tirso de Molina, mas a irreverência era pelos vistos mais forte do que ele e esta peça, que conta a história de um ateu que é castigado por Deus, ao assumir falsamente o papel de um religioso, foi também proscrita de imediato e para sempre.
Depois destes desaires, Molière publicou uma defesa intitulada Lettre sur la Comédie de l’imposteur, e escreveu logo na temporada seguinte (1666-1667) cinco peças, das quais apenas Le Médecin malgré Lui teve sucesso. Tentou de novo levar a cena Tartufo, com o nome Panulphe ou L’imposteur, mas tendo o Rei deixado Paris em viagem, o arcebispo voltou a censurá-la.
O Rei autorizou finalmente a exibição de Le Tartuffe em 1669 (neste intervalo escreveu mais 12 peças) e só nesse ano, aquela teve mais de 60 exibições. Mas entretanto Molière adoecera. Desenvolveu uma doença pulmonar eventualmente agravada pelo excesso de trabalho, de que nunca viria a libertar-se, mas continuou a escrever, a representar e a dirigir a sua companhia com o empenho de sempre.
Até ao dia 17 de fevereiro de 1773 escreveu e representou Psyché, Les fourberies de Scapin, La comtesse d’Escarbagnas, Les Femmes Savantes e por último Le Malade Imaginaire. Na quarta noite de representação desta peça de que era o protagonista, ironicamente a história de um hipocondríaco, tombou em palco com uma hemorragia e desmaiou. Foi levado para casa na Rue de Richelieu onde viria a falecer nessa noite. Foram-lhe recusados os últimos sacramentos e a Igreja recusou-se a proceder a um enterro religioso, e a sepultá-lo em solo sagrado. Por intercedência da sua segunda mulher Armande (com que casara em 1662) junto do rei, foi finalmente sepultado no cemitério de São José, quatro dias mais tarde, depois do por-do-sol e sem cerimónia.
Quando este foi criado em 1795, os seus restos mortais foram depositados no Musée des Monuments Français e em 1817, foram transferidos para o Cimetière du Père-Lachaise, em Paris.
O teatro nacional francês, a Comédie Française, é também conhecida como a Casa de Molière.
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Peças de Molière:
- La Jalousie du Barbouillé (?)
- Le Médecin volant (?)
- L’Étourdi (1654)
- Le Dépit amoureux (1656)
- Les Précieuses ridicules (1659)
- Sganarelle ou le Cocu imaginaire (1660)
- Dom Garcie de Navarre (1661)
- L’École des maris (1661)
- Les Fâcheux (1661)
- L’Ecole des femmes (1662)
- La Critique de L’École des femmes (1663)
- L’Impromptu de Versailles (1663)
- Le Mariage forcé (1664)
- La Princesse d’Élide (1664)
- Le Tartuffe (1664)
- Dom Juan (1665)
- L’Amour Médecin (1665)
- Le Misanthrope (1666)
- Le Médecin malgré lui (1666)
- Mélicerte (1666)
- Pastorale comique (1667)
- Le Sicilien ou l’Amour peintre (1667)
- Amphitryon (1668)
- George Dandin (1668)
- L’Avare (1668)
- Monsieur de Pourceaugnac (1669)
- Les Amants magnifiques (1670)
- Le Bourgeois gentilhomme (1670)
- Psyché (1671)
- Les Fourberies de Scapin (1671)
- La Comtesse d’Escarbagnas (1671)
- Les Femmes savantes (1672)
- Le Malade imaginaire (1673)
Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.
