Stray Dogs foi traduzido, vá-se lá saber porquê, por Cães Errantes quando a tradução literal seria Cães Vadios, que ante a crueldade temática do desterro urbano e a abordagem realista do malaio Tsai Ming-Liang, ao drama dos sem-abrigo que sobram, parece-me mais adequado.
É um filme de auteur, pesado, lento e monótono. Com a monotonia que traz tempo para pensar. Monótono e lento demais para os gostos mais academistas. Monótono e lento como a imagem de uma mulher, a escovar lenta e repetidamente o cabelo ao som da respiração de duas crianças a dormir, e da chuva. Durante sete minutos. Assim começa o filme, um filme com apenas sete personagens, das quais duas são indefinidas.
É uma história simples e dramática de uma família da qual restam o pai (Kang-sheng Lee) e os dois filhos (os irmãos Yi Cheng Lee e Yi Chieh Lee) que vieram da floresta para a grande cidade, neste caso de Taipé, como tantos milhões nos nossos dias num êxodo moderno e de destino tantas vezes cruelmente dececionante.
A mulher da primeira cena, (Kuei-Mei Yang) não volta a aparecer e a vida dos três personagens resume-se isso mesmo: viver. Numa deambulação monótona pela cidade o realizador explora uma paisagem urbana fantasmagórica, ao som da respiração, da chuva e do ruído dos automóveis. Enquanto os filhos procuram pelos restaurantes amostras grátis de comida, o pai (que não tem direito a nome) tem como parco sustento passear pela cidade à chuva e ao vento, empunhando cartazes, publicitando habitações de luxo. No fim do dia, os três fazem de sua casa uma divisão num prédio abandonado, e partilham um mesmo colchão no chão.
Umas das cenas que marcará é sem dúvida aquela de onze minutos, na qual o pai “devora” um repolho encontrado na cama chorando durante o tempo todo.
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Um filme pleno de mensagens e simbolismos, captados com câmara fixa e planos longos, quase sempre de ponto de fuga central, arrastando a angústia dos dias iguais do sem-abrigo com os filhos, num mundo de posse e propriedade com regras cruéis, de confronto entre o direito privado – de um mundo fechado e trancado por dentro, protegido dos vadios que partilham a crueldade das ruas e as intempéries da natureza – e a justiça social. O choque entre os dois mundos, representados também pelos grandes edifícios modernos contrastando com os outros deixados para trás, aproveitados para abrigo dos enjeitados. O drama dos migrantes rurais que acorrem às grandes cidades “a deitar por fora”.
Um dia no shopping, onde passeava com os filhos, o protagonista conheceu uma mulher. Estará aqui a esperança de alguma luz nas suas vidas. E as memórias da sua mulher?
Jornalista, Diretor. Licenciado em Estudos Artísticos. Escreve poesia e conto, pinta com quase tudo e divaga sobre as artes. É um diletante irrecuperável.